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Num campo artístico tão competitivo e em constante evolução como a música clássica, Vasco Dantas destaca-se como uma figura de excelência, cuja trajetória o consagra como um dos mais acalmados pianistas portugueses da atualidade.

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Vasco Dantas, pianista, homem jovem lê uma partitura

Por Joana Patacas*, em 1 de julho de 2024

 

Num campo artístico tão competitivo e em constante evolução como a música clássica, Vasco Dantas destaca-se como uma figura de excelência, cuja trajetória o consagra como um dos mais acalmados pianistas portugueses da atualidade.

 

O seu virtuosismo é notável e a sua técnica exemplar, permitindo-lhe executar passagens complexas com surpreendente facilidade e fluidez. Os seus dedos deslizam pelo teclado, produzindo um som cristalino e brilhante, mesmo nos momentos de maior intensidade e velocidade. O seu domínio do instrumento possibilita a criação de uma ampla gama de dinâmicas e subtilezas, dos pianíssimos mais delicados aos fortíssimos mais poderosos. No entanto, a sua destreza técnica serve a expressividade e a emoção, resultando em interpretações profundamente envolventes e tocantes, que têm vindo a conquistar o público e a crítica.

 
Mozart torna-se extremamente emotivo, quase romântico, neste concerto para piano. Vasco Dantas sublinhou-o com a sua execução introvertida e quase impecável, à qual, apesar de todo o sentimento, não faltou uma estrutura virtuosa, o toque suave, quase lisonjeiro, as linhas melódicas fluidas e as corridas cintilantes, bem como a dinâmica finamente graduada.PZ-news.de

Nascido no Porto em 1992, Vasco Dantas tem conquistado o mundo com o seu talento extraordinário. Com uma carreira internacional de sucesso e mais de 50 prémios em concursos internacionais, é um nome incontornável no panorama da música clássica. Desde a sua estreia em público com apenas seis anos no Museu do Carro Elétrico do Porto até aos palcos mais prestigiados do mundo – o Carnegie Hall em Nova Iorque, onde se estreou a solo, o Théâtre des Champs-Elysées em Paris e o Grande Salão do Conservatório Tchaikovsky de Moscovo como solista com orquestra – tem cativado audiências com o seu virtuosismo e paixão pela música.

 
Dantas é um intérprete de excecionais possibilidades técnicas que, além disso, consegue pôr em prática as suas capacidades para criar expressões musicais curtas, mas impressionantes. (…) Com gestos calmos e movimentos corporais discretos, ele fez um contacto com o teclado através do qual a unidade do som e do movimento pôde realmente ser percebida.” – Muzički Limbo

É licenciado em Música com “1st Class Distinction” no London Royal College of Music, tendo estudado piano com Dmitri Alexeev e Niel Immelman e regência com Peter Stark e Natalia Luis-Bassa. Concluiu o Mestrado em Performance com nota máxima sob a orientação de Heribert Koch, bem como o Doutoramento “Konzertexamen” na Universidade de Münster. A sua formação de excelência reflete-se nas suas interpretações, como tem sido destacado pela crítica:

 
Pianista raro pela sua grande generosidade e força emotiva, o Sr. Dantas caracteriza-se pela intensidade e doçura simultaneamente consignadas nas suas interpretações.” –  Aachener Zeitung (Düren)
 

Além do seu percurso como pianista, Vasco Dantas também se destaca como diretor artístico de vários festivais, incluindo o Algarve Music Series, o Sezim Music Series, o The Piano Concerto Festival e os Music Series Festivals. Nesta entrevista exclusiva à SMART, fala-nos sobre os seus primeiros passos na música, as experiências e desafios que moldaram a sua trajetória e as valiosas lições aprendidas ao longo desse caminho.

 

Como é que a música entrou na sua vida?

 

Em tempos, o meu pai cantava num coro. Ensaiava aos sábados e eu, por vezes, ia com ele aos ensaios. Aos três anos era uma criança muito irrequieta e nos intervalos tentava ir para onde estava o teclado do professor José Manuel Pinheiro, que era o maestro do coro, e punha-me a tentar adivinhar os sons. Ele achou muita piada e começou a fazer alguns jogos musicais e testes rápidos. Apercebeu-se de que eu tinha talento musical e que eu tinha algum tipo de ouvido absoluto, porque reagia muito bem e muito rapidamente. Então, ele aconselhou o meu pai a inscrever-me na música. Na altura, o meu pai ficou muito surpreendido porque não sabia que era possível começar a aprender um instrumento tão cedo. Comecei a aprender na Valentim de Carvalho, no Porto, e desde aí continuei a estudar música.

 

Começou pelo estudo do piano, mas depois também começou a aprender violino. Fale-nos disso.

 

O violino surgiu porque a minha irmã, que é dois anos e meio mais nova do que eu, também começou a estudar música. Ela tinha cerca de três anos na altura e iniciou os seus estudos de violino através do método Suzuki. Como ela estudava em casa, eu ouvia-a a tocar e isso despertou em mim o interesse pelo instrumento. Então, disse aos meus pais que queria também começar a estudar violino, para além do piano que já estava a aprender.

 

E concluiu os estudos nos dois instrumentos?

 

Estudei violino até completar o 8º grau, mas chegou um ponto em que tive de fazer uma escolha. Apesar de gostar muito, o piano foi o meu primeiro instrumento. Além disso, já estava muito avançado nos meus estudos, mesmo quando comparado com outros colegas. Senti que tinha um maior potencial para me desenvolver e expressar musicalmente através do piano.

 

Que diferenças havia entre os dois instrumentos?

 

Eu gostava muito de tocar violino e quis sempre manter a aprendizagem desse instrumento durante o máximo de tempo possível. Até tinha alguma facilidade no violino; para mim, o piano era um instrumento mais difícil. Dedicava muito mais horas de estudo ao piano, mas mantinha o violino porque me permitia fazer música em conjunto com outros colegas. Sob esse ponto de vista, o piano é um instrumento mais solitário. Lembro-me perfeitamente de me querer inscrever nas OJ (Orquestras Jovens dos Conservatórios Oficiais de Música) onde estavam todos os meus colegas, mas não existiam vagas para piano. Ficava muito triste por não poder ir com eles só porque era pianista. Entretanto, percebi que também podia fazer provas como violinista. Nunca ninguém o tinha feito com um segundo instrumento. Eu estudava violino numa escola particular e todos faziam as provas com o instrumento que estudavam no Conservatório. Então, houve um dia que fui fazer a prova como violinista, fui aprovado e passei a participar nas OJ. Ou seja, de certo modo, mantive o estudo do violino porque me permitia socializar e fazer música em conjunto.

 

Ainda toca violino?

 

Só de vez em quando, por brincadeira, e nunca em contexto profissional. O piano exige muito de mim em termos profissionais.

 

Começou a atuar muito cedo. Como foi fazer uma apresentação pública com seis anos no Museu do Carro Elétrico do Porto?

 

Ah, foi muito fácil! Uma criança de seis anos não tem noção de que está a dar um concerto. Na mesma altura também toquei no programa “Praça da Alegria”, na RTP. Era espetacular. Só mais tarde é que se tornou mais difícil fazer apresentações publicas, quando já não eram uma “brincadeira”. Acho que só a partir da adolescência é que comecei a ter consciência do que é estar em palco, o que é que isso representa e como gerir o facto de ter outras pessoas a avaliar o meu trabalho.

 

Quando é que começou a ter noção de que ia ser músico profissional?

 

Na escola, comparando-me com o resto da turma, era um aluno médio bom. Não era o melhor da turma. Estava entre os bons alunos, mas não me destacava como o melhor. No entanto, nos concursos de piano, era uma história diferente. Ganhava sempre um prémio, geralmente o primeiro. Isso começou a ser notório na adolescência, e foi quando percebi que isso poderia significar algo importante. Comecei, então, a imaginar como seria seguir uma carreira musical. Contudo, nunca tomei uma decisão definitiva. No final do 9º ano, optei por Ciências e Tecnologias, porque não queria limitar as minhas opções. Aliás, cheguei mesmo a considerar ir para Medicina. Estive inserido no projeto “Pós…Zarco”, na Escola Secundária Gonçalo de Zarco em Matosinhos, que preparava os alunos que queriam seguir Medicina no Ensino Superior, incluindo aulas de espanhol para fazermos a prova de acesso em Espanha, onde as médias de acesso eram bastante inferiores. A meio do secundário, comecei a perceber que não queria seguir Medicina e virei-me para as Engenharias. Entretanto, entrei na Faculdade de Engenharia do Porto (FEUP) em Engenharia de materiais, com a intenção de avançar posteriormente para Engenharia de Micro e Nanotecnologias, mas em simultâneo fiz provas em Londres para a licenciatura de música no Royal College, no Royal Academy e no Trinity College. Com 18 anos, acabei por congelar a matrícula na FEUP e fui para Londres, onde acabei por me licenciar com distinção no London Royal College of Music.

 

A ida para Londres foi motivada pela perceção de que teria mais oportunidades no estrangeiro do que em Portugal?

 

Sim, completamente. Eu tinha a opção de ficar em Portugal, mas já tinha decidido que se escolhesse seguir Música, queria fazê-lo lá fora. As provas em Londres fazem-se um ano antes. Eu tive de decidir em setembro do 12º ano se queria fazer provas para entrar na licenciatura no ano seguinte, em setembro. Fiz as provas ainda em novembro e dezembro de 2009, e depois entrei em 2010. Naquela altura, havia poucos músicos portugueses a estudar no estrangeiro, mas tinha dois exemplos de pianistas portugueses que tinham ido para Inglaterra – o João Pedro Costa, que também tinha passado pelo Conservatório de Música do Porto, estava em Manchester e o Pedro Gomes que estava no Royal College, em Londres – e quis seguir esse caminho. Já tinha participado em concursos por todo o país e conquistado vários prémios, mas de vez em quando enfrentava alguns choques de realidade. Por exemplo, quando competia em Espanha, já não conseguia ganhar o primeiro prémio. Percebi que em Portugal seria realmente mais difícil evoluir do que se fosse para o estrangeiro, onde claramente havia pessoas melhores do que eu. Também me entusiasmou a ideia de aventura que era ir estudar para fora, e que acaba sempre por ser uma mais-valia. Com isto, não quero dizer que em Portugal não existam excelentes professores, mas a aprendizagem não se limita apenas ao professor. Além disso, estar integrado numa faculdade em Londres é, por si só, uma experiência única. Não se tratava apenas da oferta educativa, mas também da oferta cultural, que está disponível para os estudantes, a diversidade de alunos que conhecemos de outros países, e a enorme rede de contactos que começamos a criar ainda com 18 anos. Tudo isto conta. Quando saí do Royal College, tinha uma rede de contactos muito mais vasta do que a de muitos colegas que optaram por ficar em Portugal. Mesmo que eles tocassem tão bem quanto eu, essa dimensão extra é muito relevante e faz a diferença. E também é provável que tenha enfrentado alguns desafios com os quais não me teria deparado se tivesse ficado em Portugal.

 

Fale-nos sobre esses desafios.

 

Para já, deparamo-nos com outra realidade: é um país diferente, com outra língua, outra moeda e outra cultura. Além disso, é muito desafiante estar rodeado todos os dias de tantos pianistas talentosos. Tinha colegas oriundos de todos os países e nas aulas tocávamos uns para os outros, sob orientação dos professores. Nunca tinha estado num ambiente com tanto talento reunido numa só sala. De repente, percebi que estava apenas na média ou, nalguns casos, abaixo dela em termos de nível, comparado com os meus colegas. Isso levou-me a sentir a necessidade de trabalhar ainda mais para acompanhar o ritmo e o nível musical que eles demonstravam. Paralelamente, tinha a oportunidade de tocar piano e fazer música com eles, o que se revelou extremamente enriquecedor. Diria que o maior desafio foi esta necessidade de elevar a minha qualidade musical. Também tive muitas oportunidades, como ter aulas com professores e pianistas internacionais, ou assistir a masterclasses de incríveis artistas internacionais, como Alfred Brendel, András Schiff ou Lang Lang, que estão entre os melhores pianistas do mundo. Essa possibilidade era-nos apresentada como algo completamente normal, e podíamo-nos inscrever para participar nessas aulas ou assistir às mesmas e ter contacto pessoal com estes artistas convidados. Isso permitiu-me alargar imenso os horizontes artísticos e receber pequenos conselhos e ideias que se tornaram importantíssimas no meu percurso.

 

Qual foi a peça ou compositor que mais o desafiou durante a sua formação?

 

Durante a licenciatura, Franz Liszt foi, sem dúvida, o compositor que mais me desafiou. Naquela altura, estava muito envolvido no estudo do vasto repertório e vida artística do compositor Franz Liszt. Realizei alguns projetos interessantes com a “Rapsódia Espanhola” de Liszt, que, apesar do seu nome, é uma coletânea de temas ibéricos, incluindo incluindo os “Grandes Études de Paganini” e a Sonata em si menor, de Liszt, e as Variações “Souvenir de Paganini” de Chopin. Foi um período em que abordei muitas obras de grande virtuosismo, o que fez de Liszt o compositor que mais me desafiou naquela fase. Este período resultou até em dois CDs: o meu primeiro álbum “Promenade” ainda gravado no Royal College of Music em 2013, incluindo Liszt, os Sonetos de Petrarca, e a Rapsódia Espanhola, assim como Mussorgsky “Quadros de uma Exposição”. E o segundo álbum já gravado na Universidade de Münster no início do meu percurso na Alemanha, em 2015, incluindo os “Grandes Études de Paganini”, a Sonata em si menor e as Variações “Souvenir de Paganini” de Chopin.

 

E atualmente?

 

Neste preciso momento, as obras de Rachmaninoff e de Mily Balakirev, ambos compositores russos. Balakirev é o autor de “Islamey“, uma composição para piano escrita em 1869, que ainda hoje é considerada uma das peças mais difíceis do mundo. É bastante desafiante e estou a montar um programa de recital em torno destes dois compositores e que me tem ocupado grande parte do meu pensamento.

 

Já ganhou mais de 50 prémios. Como é que um jovem artista lida com este nível de sucesso e reconhecimento?

 

Requer algum trabalho emocional. A minha professora no Conservatório de Música do Porto, Rosgard Lingardsson, foi fundamental neste processo. Ela percebeu que eu tendia a ser muito competitivo e soube tirar partido disso a meu favor. Recordo-me de como ela constantemente estabelecia novos desafios para me incentivar a trabalhar mais. Os programas curriculares eram feitos de modo a serem acessíveis a todos os alunos, o que acabava por puxar o nível “para baixo”. Entretanto, atualmente, tenho a sensação de que essa tendência ainda se acentuou mais. Como eu rapidamente cumpria com tudo o que era requerido, ela procurava ir além, motivando-me a participar em concursos. Comecei a ganhar prémios em vários concursos muito cedo e com muita frequência, o que podia criar uma falsa impressão de superioridade. Para contrabalançar isso, a Professora Rosgard incentivava-me a participar em concursos internacionais. Essa experiência revelou-se útil, pois houve momentos em que estudava menos, confiante de que ganharia como sempre, o que nem sempre acontecia. Enfrentar esta diferente realidade, como não ganhar nada em concursos em Espanha, fazia com que voltasse a dedicar-me ao estudo ainda mais intensamente. Essa gestão foi crucial. Apesar da minha natureza competitiva, sou muito perfeccionista, e ela soube canalizar estas características de forma pedagógica. Assim, no final de cada semestre, eu já tinha feito o equivalente a um ano letivo completo.

 

Em termos profissionais, também é Diretor Artístico do Algarve Music Series e de outros festivais. Como é que um instrumentista com uma agenda tão preenchida como a sua faz a gestão de todas estas responsabilidades?

 

O Algarve Music Series foi criado pela violoncelista Isabel Vaz que me convidou para diretor artístico na terceira edição do festival. Desde então, dividimos tarefas. Entretanto, mudámos o nome para Algarve Music Series, pois antes chamava-se “Festival Internacional de Música de Câmara do Algarve”, um nome muito longo e com pouca projeção internacional. A gestão da agenda é realmente difícil. Num festival com poucos recursos, como acontece com a maior parte dos festivais em Portugal, é necessário que o diretor artístico assuma várias funções. No início, não tínhamos uma estrutura muito desenvolvida. Fui produtor, diretor, motorista, atuava, respondia a emails e geria o pouco que tínhamos, para dar para tudo. Simultaneamente, continuava com os meus concertos. Foi muito exigente. Felizmente, conseguimos fazer com que estrutura do festival fosse crescendo, apesar de não ter sido fácil. Agora temos uma estrutura mais robusta e somos mais eficientes, mas no início precisávamos de mais apoios para ter uma equipa maior, mas isso significava que precisávamos de pessoas que nos ajudassem a ter melhor visibilidade e a apresentar os projetos de maneira mais eficaz para que fosse possível conseguirmos esses apoios. Agora, cada vez mais, consigo ser apenas o diretor artístico.

 

Entretanto, expandiram o conceito do Music Series?

 

Exatamente. O Avis Music Series vai para a sua terceira edição em setembro e o Sezim Music Series teve a sua primeira edição no final de abril deste ano e foi um enorme sucesso. Já estava à espera que corresse muito bem porque a nível artístico tivemos convidados extraordinários: eu toquei com o Mário Laginha Trio, mas também tivemos atuações de Isabel Vaz (violoncelo), Ricardo Gaspar (Viola D’Arco), Marco Rodrigues (Trombone), Joel Cardoso (Clarinete) e João Barradas (acordeão). Além disso, o festival decorreu na histórica Casa de Sezim, em Guimarães, o que conferiu uma atmosfera ainda mais requintada ao espetáculo. Entretanto, no final deste ano, o Music Series terá a sua estreia no deslumbrante Teatro del Lago, em Frutillar, no sul do Chile. É um centro artístico que incentiva o desenvolvimento da cultura e da criatividade na educação através da música e da arte e o atual diretor do Festival de Música do Teatro del Lago e responsável pela programação é o português João Aboim. Já mantínhamos conversas com ele há algum tempo e entretanto foi aprovada uma plataforma para artistas portugueses. Até agora não existia nenhum projeto deste género no Chile que promovesse o contacto cultural entre os dois países. Foi assim que surgiu a programação do Teatro del Lago Music Series, que passa a ter anualmente uma programação dedicada a artistas relevantes do panorama musical português.

 

Também é codiretor artístico do The Piano Concerto Festival, no Algarve. Como é que este evento se distingue dos outros?

 

Este é um festival mais pedagógico. Enquanto nos outros festivais convidamos vários artistas para compor a programação e realizar concertos, este evento oferece aos jovens pianistas a oportunidade de tocar com orquestra. Identificámos uma lacuna significativa nesta área. Apesar de haver qualidade no ensino de piano nas universidades portuguesas, as oportunidades para os estudantes tocarem com orquestra são muito limitadas. Isso deve-se ao alto custo, à complexa logística, à falta de espaço e ao tempo necessário para organizar 50 músicos em palco, entre outras coisas. No entanto, é fundamental para um pianista que aspire a uma carreira profissional ter experiência a tocar com orquestra. Observámos que muitos colegas tocavam muito bem em recitais a solo, mas depois enfrentavam dificuldades ao tocar com orquestra, por falta de experiência em seguir um maestro ou em se adaptar ao contexto orquestral, algo que é fundamental para alcançar um alto nível nesta área profissional. Tem, portanto, esta vertente mais educativa, pois oferece aos pianistas a oportunidade de ensaiar, gravar e atuar com orquestra e participar em masterclasses com diferentes professores e maestros. Além disso, o festival está aberto à comunidade, permitindo ao público em geral assistir aos concertos. Este ano (2024), o festival terá lugar em duas localizações: em Faro, com a Orquestra do Algarve no Teatro das Figuras; e em Florença (Itália), com a Orquestra il Contrappunto.

 

Considera que o ecossistema em Portugal está mais propício ao aparecimento deste tipo de festivais de música clássica ou ainda existem alguns entraves?

 

Acho que o ambiente para a música clássica em Portugal nunca foi tão favorável, mas ainda falta o investimento que se vê em géneros musicais mais populares e comerciais. Noutros estilos, o investimento foca-se mais no marketing e no “visual” do espetáculo, ou seja, no que é “instagramável”. Isso atrai mais o público em massa, apesar de por vezes poder não ter tanta qualidade artística. A música clássica, por outro lado, tende a concentrar os seus recursos na qualidade dos músicos e não tem conseguido atingir tanta divulgação e criação de imagem. Constatamos isso na experiência do público que, muitas vezes, nem sabe que tais eventos existem. Frequentemente ouço pessoas que só sabem de um concerto depois de ele ter acontecido e perguntam-se como não souberam dele antes. Isso mostra que a divulgação ainda é insuficiente, mas tenho visto alguns festivais, orquestras e casas de espetáculo com novas direções artísticas a melhorarem muito este aspeto.

A estratégia de marketing na música clássica precisa de evoluir. Outros géneros conseguem fazer parcerias com marcas e criar campanhas publicitárias que tornam os eventos “cool“, algo que falta na música clássica. Apesar de as novas tecnologias e as redes sociais ajudarem a divulgar a música clássica e torná-la mais acessível, isso ainda não é suficiente. Há cada vez mais músicos de excelência, com formação superior, e muitas pessoas interessadas em ouvi-los, mas a criação de um público mais envolvido ainda é um desafio. Muitos dos meus amigos músicos acabam por emigrar porque, apesar de receberem formação aqui, é no exterior que encontram melhores oportunidades. É triste ver o investimento do Estado na formação desses artistas não ser aproveitado aqui em Portugal, onde eles poderiam enriquecer o nosso panorama cultural.

 

Também leciona. Como é que tem sido essa experiência?

 

Como plano “B”, fiz o mestrado em Ensino de Música na Universidade de Aveiro, mas só dou aulas particulares, e com menos regularidade do que gostaria. Numa escola de música, um professor tem de seguir o programa curricular, muitas vezes decidido por pessoas muito competentes em termos académicos que, apesar das suas qualificações, podem não compreender como é que funciona a prática, o que é essencial para ensinar música. E isso acaba também por desmotivar as crianças. Ao dar aulas fora do sistema educacional formal, posso ensinar os alunos que estão realmente empenhados e interessados. Além disso, não preciso de lidar com a parte burocrática e com programas que não acrescentam valor prático.

 

Entretanto, também tem um mestrado e um doutoramento em Performance “Konzertexamen” na Universidade de Munster. O que é que leva um intérprete tão bem sucedido a investir continuamente na formação académica?

 

Na Alemanha, o “Konzertexamen” não é um grau de doutoramento tradicional. Trata-se de um grau avançado na área de performance musical, que valoriza principalmente a parte prática, sem a componente de pesquisa académica, com o objetivo de preparar os músicos para carreiras de concerto ao mais alto nível. Embora não tenha feito uma tese académica, esta qualificação permite, surgindo o convite, dar aulas em qualquer universidade alemã, pois atesta um nível excecional de mestria e competência na performance musical. Em Portugal é diferente. Se quisesse tirar um doutoramento em performance, teria de escrever uma extensa tese académica. Como já mencionei, nas universidades portuguesas, o nível académico é exigido aos músicos (da área performativa), mas aos académicos não é exigido a mesma proporcionalidade de experiência prática em performance. Não considero que isso seja correto. Interesso-me muito pela parte académica, mas não nos moldes em que ela me foi oferecida em Portugal, nomeadamente na Universidade de Aveiro onde concluí o mestrado em ensino da música. Senti isso durante a minha tese de mestrado, quando já possuía um conhecimento profundo sobre o tema, mas ainda assim tive que seguir regras estritas, como escrever um número mínimo de páginas, palavras, e incluir uma extensa bibliografia, não necessariamente acrescentando conhecimento ao tema mas tornando-o com certeza mais extenso. Só faria um doutoramento cá se isso fosse uma inevitabilidade por alguma razão, pois não tenho interesse em concluir esse grau académico apenas para cumprir requisitos formais.

 

Como vê o seu papel na divulgação da música portuguesa no estrangeiro, enquanto músico português a atuar internacionalmente?

 

Tenho divulgado bastante música portuguesa lá fora e as pessoas acabam por me associar a isso também. A verdade é que, no mundo da música clássica, valoriza-se mais a originalidade e a marca que os artistas trazem do que apenas a performance em si. Se um pianista alemão tocar Beethoven ou Brahms, o público pode questionar por que razão deveria ouvir um português a tocar o mesmo repertório, uma vez que já ouviram inúmeros alemães a fazê-lo. Contudo, se eu apresentar algo português que eles nunca ouviram, acabo por gerar mais alcance, porque as pessoas estão interessadas em descobrir novos compositores e novas músicas. Considero que este papel de divulgação é algo que todos os músicos deveriam assumir. Já faço isso há bastante tempo e houve uma altura em que notei que nem todos gostavam de o fazer, pois existia uma certa perceção de que a música portuguesa era de qualidade inferior. Hoje em dia, essa perceção mudou. Sinto que os músicos reconhecem cada vez mais que a música portuguesa é uma mais-valia e valorizam cada vez mais o repertório que inclui compositores portugueses.

 

Além da sua carreira como pianista, possui outros interesses ou passatempos?

 

Tenho várias outras responsabilidades, seja como professor ou como diretor artístico. Por vezes desempenho outras funções mais aleatórias, como designer, gestor ou contabilista. Mas também me dedico a outras atividades nos meus tempos livres. Gosto muito de desporto, como surf, atletismo e ciclismo. Gosto de estar em locais de natureza, e valorizo muito o estar em silêncio (talvez porque já passe grande parte dos meus dias envolvido com música). Por vezes, a última coisa que quero é ver televisão ou ouvir rádio; prefiro o silêncio, ou então ir à praia ou fazer uma caminhada. Tenho o privilégio de viver à beira-mar e aproveito para praticar desportos ao ar livre e relaxar. Também gosto muito de futebol e de jogar xadrez. Jogo xadrez desde pequeno e, em alguns momentos da minha vida, chegou mesmo a ser um vício! Participei em campeonatos distritais e nacionais. Atualmente, continuo a jogar, mas apenas de forma amadora. Além de tudo isto, estou sempre a tentar aprender algo novo; neste momento, estou a melhorar o meu francês, dedicando alguns minutos todos os dias ao estudo e prática desta língua, ao mesmo tempo que tento manter a fluência no alemão.

 

Por fim, que conselhos daria aos jovens músicos ou pianistas que desejam seguir os seus passos e construir uma carreira de sucesso? 

 

Tantos… Se pudesse dar apenas um, diria que praticar na sala de estudo por três, seis ou oito horas por dia é importante, mas não é o mais importante. Inicialmente, sim, é crucial para se alcançar um nível elevado. No entanto, chega um momento em que, talvez, seja mais benéfico usar esse tempo para assistir a concertos, ouvir colegas, ou conhecer outros artistas. Essas experiências podem ser mais valiosas do que uma hora extra de estudo isolado. No início, o mais importante para mim era estudar o máximo possível e conhecer novos artistas. Contudo, nunca faria mais do que quatro horas por dia. Isso é mais do que suficiente para manter a forma e ainda sobram vinte horas, o que permite ter equilíbrio saudável com outras atividades, como ter uma melhor vida social, familiar ou dormir oito horas diárias. Vejo muitos colegas a queixar-se de falta de tempo, mas acho que isso se deve, muitas vezes, a má gestão. Trabalhar intensamente por três ou quatro horas diárias deveria ser o suficiente. O estudo é fundamental, mas equilibrar isso com outras atividades que nos complementam e nos moldam como ser humano é igualmente importante.

 

Disse que tinha muitos conselhos. Gostaria de partilhar mais algum?

 

Sim, gostaria de dizer que não devem ter receio de explorar e experimentar nos seus ensaios, mesmo que isso pareça arriscado ou seja alvo de críticas. Por exemplo, Astor Piazzolla, durante os seus estudos em França, criava composições que inicialmente ocultava por achar que seriam vistas como ridículas. Ele estava a experimentar com estilos que não eram considerados sérios, como fundir elementos do tango com a música clássica. A sua professora ficou inicialmente descontente por ele estar a investir em ideias que pareciam frívolas. No entanto, quando ela finalmente ouviu o trabalho dele, reconheceu o seu valor único e inovador. Hoje, Piazzolla é celebrado justamente por essa inovação e originalidade. Portanto, a lição aqui é não ter medo de seguir o instinto criativo, mesmo que isso pareça ir contra as normas estabelecidas.

 

Joana Patacas – Assessoria de Comunicação e de Conteúdos

 

Quer saber mais? Veja e ouça abaixo uma das suas belas apresentações: